16/05/2010

Tragédias cotidianas

Primeiro ato

Rosana está comigo há uns seis anos. Seis anos de casa cheirosa, comidinha caseira (faz um bife à milanesa com purê, que é tudo de bom) e papo, muito papo.

Ela é bem mais que uma simples funcionária doméstica, é a dona da casa e, não raro, minha dona também. Decide o que visto, com quem posso ou não me envolver e, até mesmo, a que horas devo desligar o computador para “descansar um pouco”.

Não é mensalista e, a bem da verdade, não é diarista, também. É uma zona que inventamos e que dá certo. Trabalha três dias por semana (ela escolhe quais), chega cedo e só vai embora após deixar tudo em ordem.

Nordestina, dois casamentos e uns 15 anos de Rio. Veio tentar a vida, ficou na casa de uma prima, no Complexo do Alemão, e continua por lá. “Juntou umas economias” e construiu um “sala e quarto” que é um de seus orgulhos. O outro é o filho, Jeremias, do primeiro casamento. Bom menino, boas notas, “moleque do bem”, ajuda em casa.

Terça-feira, Rosana chegou mais cedo. Entrou, sem as bagunças de sempre e, tão logo me encontrou, abraçou-me e, com todas as forças, desmontou num pranto descontrolado e comovente. À minha perplexidade, respondeu com um pedido arrasador e, inevitavelmente chocante: queria ser dispensada naquele dia, para enterrar o filho; algum dinheiro e orientações para desembaraçar o corpo, no IML.

Jeremias, o bom Jerê, soltava pipa com os amigos, na véspera, sobre uma laje, quando a polícia entrou na favela. Recebida a tiros, reagiu. Uma bala perdida ceifou um dos orgulhos de Rosana, que sempre reclamava do aumento da violência na comunidade: “Se a polícia fosse lá toda hora, acabava com os abusos da bandidagem”.

Fecha pano.

Abre para segundo ato

Dia desses, fui a um churrasco, desses que tem pelada, misturada com pagode e cerveja. Coisa de gente simples, gente fácil de gostar, sem frescuras. Entre uma batucada na mesa, uma beiçada na “purinha” e as inevitáveis rodinhas de piadas, sempre se conhece mais alguém. Dessa vez, dentre outros, conheci Toínho. Quer dizer, Toínho pra rapaziada, lá fora, cabo Antunes, 26 anos, oito de PM.

Toínho é do cacete! Bom de bola, bom de bico e bom de papo. Caçula de quatro irmãos, viu o pai, pedreiro, “fazer das tripas, coração” para criar os filhos, na senda do bem. A mãe, doméstica e “amorosa”, morreu de complicações numa cirurgia de varizes.

Toínho foi criado numa favela da Tijuca. Jogou bola de gude e rodou pião, vendo cadáveres pelas vielas. Viu malandro virar bandido e perdeu amigos de infância, adotados pelo narcotráfico. Queria um mundo melhor, mais justo, com chances para todos. Embruteceu, sem perder a ternura, mesmo sem nunca ter ouvido falar de Guevara. Entrou pra PM.

Segunda-feira, estava de plantão. A inteligência da corporação localizou o paradeiro de um perigoso traficante e despachou uma equipe para o Complexo do Alemão.

Foram recebidos à bala e reagiram. Foi tiro pra todo lado. Parece que um menino foi vítima de bala perdida: “Tenho muito medo quando saio em missão. Bandido não respeita mais polícia. Nunca sei se vou voltar”.

Fecha pano.

Abre para terceiro ato

Agora, não é mais terça, é quarta-feira. O telejornal reúne, ironicamente, duas pessoas queridas: Rosana, meu anjo da guarda e Toínho, o bom de bola. Anônimos entre si, unidos por uma tragédia cotidiana que, finalmente, me atingiu: as nefastas balas perdidas.

As lágrimas de Rosana, na telinha, pareciam ainda maiores, mais sofridas. Enterrava seu Jeremias, com o desespero de uma Pietá tupiniquim, sem direito aos mármores de Michelangelo. Nem pra lápide.

Cabo Antunes, escoltado, prestou depoimento como um dos suspeitos dos disparos fatais. Seu rosto, transfigurado, era a própria imagem da desesperança. Tenso, confuso, perdera o orgulho de justiceiro. Mal remunerado, mal preparado, mal equipado, queria apenas cumprir seu papel de integrante da malha protetora da sociedade. Parece que errou o tiro.

Fecha pano.

Anderson Fabiano

Imagem: Google