18/09/2010

Sorriso on the rocks

Crônica incluída na 1ª Antologia de Crônicas Cariocas

Era bem fácil ser criança, em Cascadura, lá pelas bandas dos anos cinquenta. O futuro ficava bem depois das Ipanemas que, perdido entre piões, bolas de gude e cerol, nem sabia se existiam. Os dias eram enormes e a pobreza era disfarçada sob o manto da simplicidade, sem grifes nem crediários em atraso. Tudo simples como pão com manteiga e café com leite. Os dias começavam com galos estridentes e terminavam com os acordes finais de “Jerônimo, o herói do sertão”. Por vezes, driblava a vigilância da avó e conseguia saber alguma coisa do “Anjo”, que vinha logo depois e nada mais. Janete Clair, nem pensar! Não era coisa pra criança...

Aos sábados, brincava de gente grande passando o esfregão com palha de aço na sala ou lavando a cozinha pra poder escorregar no chão ensaboado. Nenhum Bush, nenhuma camada de ozônio, nenhum MST. As únicas balas perdidas eram as “Ruth” carimbadas, que não achava nunca. A vida era enredomada de céus azuis onde pipas coloriam a fantasia.

Os primeiros desenhos, os primeiros textos, os primeiros sonhos. Mas tudo escondido, porque ser poeta era coisa de maluco. “Filho de pobre tem que ser doutor”. Assim, minhas vidas secretas começavam sem que me desse conta. De dia, o moleque, o garoto que fugia do banho frio e que não limpava direito atrás da orelha. À noite, o irreverente, o sonhador entregando-se, no escuro, às primeiras letras. Era o despertar da clandestinidade.

O tempo fez a parte dele e eu, creio, a minha. Hoje, quando os arautos do ocaso, qual gaiteiros escoceses emergindo da névoa densa que chamei de vida desenham suas silhuetas aqui, ao meu lado, resgato aquele menino que foi, sem favores, um dos melhores de mim. O corpo desconhecia a dor das torturas e a alma, o calvário das paixões perdidas. O sorriso era franco, sem censuras, sem medos de esquinas e os amigos eram possíveis, tipo “pra sempre”.

Tudo funcionava numa rotina que não aprisionava, que descortinava experiências maravilhantes: as tranças da tia normalista, os vincos perfeitos que levavam o tio sacana para as noites de gafieira, o quiabo com linguiça e até a cama Drago, dobrável, que toda noite dava um jeito de beliscar minhas coxas no quarto de paredes repletas de flâmulas colecionadas.

Agora, me pego lembrando essas coisas, enquanto olho para mais um copo do velho uísque, suada e inútil válvula de escape de desilusões acumuladas, e rio. Rio muito sem me aperceber que sou observado por alguns curiosos parceiros de bar. E lembro que, naquele tempo saudoso, dentre os meus ritos secretos, havia um, ao menos intrigante: fazia xixi, todas as noites, quisesse ou não, pois minha avó assim ordenava. Na volta do banheiro, atravessando a cozinha, bebia um copo de água de moringa e ficava um tempão olhando para outro copo, onde minha saudosa vozinha depositava sua dentadura. Nunca entendi aquele estranho hábito dos adultos e confesso, na cabeça de menino sonhador, acreditava que minha avó ficava triste ao dormir.

Ficava imaginando se ela conseguia sonhar ou se suas noites eram uma sucessão ininterrupta de pesadelos. Afinal, seu sorriso estava ali, bem diante dos meus olhos, sem nenhuma serventia, mergulhado num copo d’água, privando aquela mulher dos últimos vestígios de vaidade...

Pensando bem, chega de bebidas por hoje. Copos roubam sorrisos.

Anderson Fabiano

Imagem: Google

9 comentários:

Helena Chiarello disse...

...

Comentei essa crônica, quando a publicou no Recanto, em 2008. Depois, disse pessoalmente minhas impressões, quando a li publicada na 1ª Antologia de Crônicas Cariocas. Lembro de ter dito, em ambas as situações, o quanto fiquei comovida com cada palavra, imagem, pensamento e lembrança descritos nessa belezura de texto!

Agora, leio-a de novo. E é como se fosse a primeira vez. Aliás, você tem esse dom. Cada coisa que escreve parece sempre tão hoje, tão própria às situações e emoções que a vida oferece e se encaixa de forma tão fácil às nossas próprias lembranças e saudades que a gente vê, ouve e sente cada coisa que está sendo dita...

Não saberia dizer o que me impressiona mais... Se as imagens (algumas divertidas, outras nostálgicas, muitas saudosas), ou a genialidade das associações, ou a capacidade incrível que você tem de colocar tanta força, sentido e direção nas expressões que usa...

Sabe que gosto de destacar frases para comentar um texto, citando as que mais me impressionam. Mas nesse caso, teria que citar a crônica inteira. Não é apenas boa. É fantástica!

Amo sim, por isso também!
E te beijo, carinho, beijo...

Jorge Sader Filho disse...

Fabiano, seu escrito primoroso e as 'danações', iguais às que passei, dão vontade de escrever muito, mas o local não é próprio.
Sem saudosismos! Afinal, quando jogávamos bola de gude, o máximo que poderia acontecer era o "raspa", e uma turma mais forte carregava tudo!
Mudou muito, uma 9mm mete medo!

Abraço,
Jorge

Unknown disse...

Fabiano, não pude viver o período que você descreve em seus escritos (já que nasci com um certo atraso... rsrsrs), mas posso te afirmar que esse sentimento de que "era bem mais fácil ser criança", em qualquer lugar que seja, é universal... Galo cantando, Airton Senna na televisão, café recém passado e linguiça na chapa do fogão... são inúmeras as lembranças e sentimentos que nos deixam com água na boca.
Leio tua crônica com outros olhos e concedo a ela as mais diversas interpretações, pelo que sei da tua história, pelo que conheço do teu dia a dia, e pelo que tenho dentro de mim... de todas as formas me comovem muito as tuas palavras e me fazem grata pelo prazer da convivência com você... ainda me faltam algumas décadas para encontrar o melhor arranjo entre as palavras, mas teu escrito me deixou com "borboletas no estômago"... rsrsrs
Te adoro. Beijos, Mel.

Sonia Pallone disse...

Que deliciosa prosa Anderson! Com um gostinho bom de nostalgia regada a encantadora sensibilidade, adorei. Um beijo grande, obrigada pelo carinho no Solidão, tem post novo e selinho também.

Maria Helena Sleutjes disse...

E o mais importante é que nossas vidas secretas eram as mais importantes e deliciosamente nossas.
Bjos

mundo azul disse...

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Que delicia de crônica! Enquanto lia, um filme passava em minha cabeça e rememorei também, as minhas passagens... Muito parecidas com as suas.
É bom ler textos assim, bem escritos e vibrantes de emoções!

Beijos de luz e o meu carinho, Anderson...

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Mahria disse...

Li num fôlego só, não deu pra parar antes da última palavra.


Bjs
Mah

Amélia Ribeiro disse...

Olá Fabiano,

excelente texto e lindas as recordações da infância!

Um beijo e votos de um bom final de semana.

Blogadinha disse...

Ladrão que rouba ladrão merece copo cheio - a leveza da infância. Coisa boa de se viver para contar. Gostei! Abraço.