27/09/2011

Ronaldinho Gaúcho e Machado de Assis

Sei que parece título de tela de Salvador Dali, mas infelizmente (só soube agora) há uma ligação indelével entre esses dois. E que ligação!

O jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho, atualmente no Flamengo (time de futebol do Rio de Janeiro), recebeu, por ocasião do 110º aniversário de nascimento do escritor (e flamenguista histórico) José Lins do Rego, a mais importante comenda da Academia Brasileira de Letras – a Medalha Machado de Assis, uma espécie de Prêmio Nobel da Literatura Brasileira.

Nada contra a pessoa Ronaldinho (a quem sequer conheço) ou mesmo ao atleta rubro-negro, pois nem minha condição de vascaíno me cega diante das óbvias habilidades do referido craque que, quando resolve jogar, inferniza as defesas adversárias. Mas, minhas versões escritor e editor estão uma arara!

A ABL não tinha o direito de esculhambar com a Cultura, nem com a Literatura Brasileira de forma tão vil, tão irresponsável, tão ultrajante. Não num país com tão pouco espaço para escritores, poetas, dramaturgos, roteiristas e afins. Um país onde a simples necessidade de se publicar um livro se transforma, diuturnamente, numa aventura quixotesca, numa insana peregrinação (de pires na mão) atrás de patrocinadores, aonde tantas boas ideias se vão, e de autores que se perdem no ostracismo ou são reduzidos a figuras boêmias, maltrapilhas, verdadeiros personagens dos becos escuros da vida.

Não! Definitivamente, não! O homenageado nem livro preferido tem. Se é que já leu algum.

O Luiz Carlos Prates está perfeito em sua crônica. Pode ter lá seu jeito ácido de dizer as coisas, mas nem de longe perdeu o foco do absurdo cometido.

Não discuto a preferência futebolística de José Lins do Rego, nem tão pouco a homenagem ao atleta, mas o abismo existente entre homenagem e homenageado. Afinal, que contribuição deu Ronaldinho Gaúcho à Cultura Brasileira? Saber jogar bola? Então Pelé, Garrincha, Zico e tantos outros já deveriam ter recebido a importante comenda. E com muito mais razões para tal.

Futebol é cultura? Bem, nesse caso, a ABL deveria transferir sua sede para as várzeas, para os campinhos poeirentos dos rincões, para as ruas sem saídas dos subúrbios brasileiros. Pois é lá, então, que vão encontrar os futuros acadêmicos.

O pobre coitado do Machado deve estar dando cambalhotas no túmulo. E nem sei se o refinado escritor sabia jogar bola.

Quer saber? Fico por aqui antes que meu lado de menino peladeiro resolva liberar todos os palavrões que se usam durante uma partida de futebol. Cultura? Nem sei mais. O que sei é que já que a ABL resolveu achar que futebol é cultura vou usar uma linguagem que os acadêmicos, pelo visto, entendem bem: Bola fora!

Anderson Fabiano

Imagem: Google

11/09/2011

Ressaca de pânico


Sempre entendi a reflexão como a melhor parceira para o silêncio.

Nesses meus tempos de neuer blumenauense, aprendi a lidar com os ruídos germânicos dessa gente que me recebeu tão bem aqui, há dois anos. E, como tudo é Brasil, pude constatar que os sons urbanos são mais ou menos os mesmos, em todo lugar: as sextas têm som de happy-hour; sábados de baladas para os jovens e de talheres e copos para os mais crescidinhos; domingos têm som de gols para todo lado e as segundas não escapam: têm som de preguiça. Os outros dias apenas completam a semana. Menos a quinta-feira, 08 de setembro. Essa trouxe um som que tememos diuturnamente por aqui: o som de pânico.

          Boletim nº 177/11 – Quinta-feira, 08 de setembro - 23:59h
          Nível do Rio Itajaí-Açú: 11,60m
          Previsão do nível: 13,00m às 6 da manhã, do dia 09/09.

A cidade mergulha no caos. Rostos expressam a dor e o medo. Gestos de solidariedade espocam aqui e ali. Notícias desencontradas. As principais vias são interditadas. Famílias fogem.

Um cãozinho é deixado para trás: era a netinha indefesa ou ele.

Blumenau mergulha, a contra gosto, num gigantesco silêncio... Um silêncio que me lembra um 2008 que não vivi, mas que meu amigos me ensinaram a respeitar.

O dia escorrega por entre as lembranças. Quero fazer alguma coisa, mas não sei o que fazer. Os telefonemas do Rio de Janeiro começam a chegar. Tenho que acalmar parentes e amigos distantes com uma calma que já não tenho.

O rio atinge 12,70m e as autoridades alertam que deve chegar a 14,00m. Nossos olhos falam tudo que nossas bocas se negam a pronunciar. A noite é de vigília.

          Boletim nº 178/11 – Sexta-feira, 09 de setembro - 23:59h
          Nível do Rio Itajaí-Açú: 11,70m
          Previsão do nível: 11,49m às 7 da manhã, do dia 10/09.

A fúria dos céus parece domada pelos Deuses e a chuva nos dá uma trégua. O “velho” Itajaí-Açú desiste das janelas de nossas casas e contenta-se com nossos pátios e ruas. Dá-se por satisfeito com os lugares invadidos, o susto pregado e espalha o lixo e a lama que não costumamos deixar soltos por ai.

Agora é noite. Da minha privilegiada varanda agradeço pelas poucas goteiras domésticas que dão ritmo ao meu silêncio, à inevitável reflexão e me assumo um pouco mais blumenauense.

Hoje, os carros não passaram tocando músicas sertanejas ou funks, as pessoas deixaram as calçadas livres, os bares não tiveram happy hour, as baladas de amanhã estão canceladas, as luzes das casas estão apagadas. Hoje é dia de ressaca de pânico.

Blumenau, 09 de setembro de 2011

Anderson Fabiano

Imagem: Helena Chiarello


21/08/2011

Sou carioca e, de quebra, filho de Oxossi

Nesses tempos de aniversário do Rio, me pego pensando nessa coisa de ser carioca e confesso, sinto lá uma pontinha de orgulho. É que muita gente pensa que carioca é quem nasce no Rio. Ledo engano! Quem nasce no Rio é fluminense. Quer dizer, nem todo mundo, porque eu, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e milhões de outros caras espertos, somos Vasco.

Ser carioca não tem nada a ver com a nossa naturalidade e sim com o estado de espírito, com o tipo de alma que habita nossos surrados corpinhos e o nosso jeito de encarar a vida. Na verdade, todo mundo pode ser carioca já que carioca que se preza, tem que ser meio moleque, irreverente, sacana e, se possível assumir, ainda que em doses homeopáticas, seu lado cafajeste. Canalha jamais! Mas, cafajeste, forever. Assim meio Carlos Imperial.

Só que para ser um legítimo carioca, tipo 12 anos, existem certas normas. Afinal, não é porque somos reconhecidamente esculhambados, que vamos abrir mão da nossa grife. Para ser aceito nessa confraria é preciso gostar de samba, futebol, chope com conversa fiada (e, afiada, também), papo de esquina e bunda dos outros. Isso mesmo: bunda! E não pensem que esse papo de bunda é coisa de machista porque estou falando de mulheres, também. As cariocas, aquelas que “basta o jeitinho dela andar” também são fissuradas numa bunda. Só que de homens, mesmo nesses tempos de múltiplas opções sexuais. Ainda está pra nascer uma carioca, que abra mão de cravar suas unhas bem tratadas numa bunda cabeluda naquela tal de hora “H”. Sabe qual é, né? Aquela hora em que gemidos discretos se transformam em urros nem tanto e os vizinhos descobrem o que estávamos fazendo no quarto, na sala, na cozinha...

Carioca e sexo, por um triz não são sinônimos. Pouca gente sabe (e quem sabe, se nega a reconhecer), mas foram os cariocas que, mesmo sem saber falar inglês, descobriram porque sexta-feira se grafa com S, E, X. E, também fomos nós que demos sentido aos happy hours, dos louros meninos do norte, quando numa livre tradução, adotamos a tradução de “horário pré-motel”.

Carioca é o único cara do mundo que está sempre pronto para receber uma desmilinguida asa de frango, quando pede a alguém para dar "umazinha".

O Rio deveria ser tombado como patrimônio cultural do mundo e não pelas águas de março (Ave, Tom!). Quando “neguinho” tava pensando em dar umas bandas lá pelos lados do moinho, a gente já vinha voltando com quilo e meio da melhor farinha. E mesmo naqueles tempos, em que paulista pensava que trabalhava mais que a gente (vide pesquisa no Fantástico), a cariocada desvairada já recebia, de braços abertos (Benção, Redentor), piauienses, mineiros, gaúchos e até paulistas na Imperial Irmandade Carioca. Mesmo que os caras se traíssem nos botecos da vida, pedindo um chopes e dois pastel.

Eu, que não tenho nada a ver com isso, modestamente, filho de Oxossi com Oxum, afilhado querido de Xangô, só lamento que o Rio já não seja tão suburbano como deveria. Pois, para quem não sabe, assim como o Brasil é mulato (Saravá, João Ubaldo), o Rio é suburbano. O Rio de Janeiro, fevereiro e março (Alô, ministro!) nunca foi Ipanema ou Barra. O Rio é Tijuca, Pilares e Madureira. O Rio nasceu no centro e, com a chegada da Família Real Portuguesa, foi mandado pro subúrbio. Nas Ipanemas da vida moram os suburbanos que deram certo. Ou ainda, os que pensam que deram certo. (E haja SPC pra segurar tanto cheque sem fundos dos falsos bacanas)

O melhor Rio ainda é o moleque, o debochado, o que prefere joelho de normalista no bonde, ao invés das bermudas “cofrinho” das fanqueiras. Nossa melhor bala é a “Ruth” (que dá figurinha e tudo) e não essas perdidas que andam por ai.

Não se iludam, aquele carioquinha de filme da Disney, com chapéu de palha e camisa listrada, só é encontrável em bares e rodas de samba pra lá da Central. Mas, como sou de Cascadura, tô bem na fita.

Sábado, primeiro de março, vou me meter numa camiseta regata, uma bermuda velha, calçar um chinelo de dedo, pegar meu tamborim, juntar a rapaziada pra tomar uma “baixa renda” com jiló e moela no bar do “seu” João e curtir minha carioquice.

“Brasil, tira as flechas do peito do meu padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar”. (Salve Moacyr Luz, Aldir Blanc e Paulo Cesar Pinheiro)

É isso aí...

Anderson Fabiano

Publicado originalmente no Recanto das Letras em 12/03/2008

Imagem: Google - São Sebastião, de Guido Reni (1575 - 1642)

21/05/2011

So what

Percebo que nas muitas páginas já escritas da minha vida, umas merecem mais destaques que outras. Algumas, já foram relidas tantas vezes que precisei marcá-las com orelhas para não perdê-las de vista. Outras, entretanto, permanecem imaculadas como alunas recém ingressas num colégio de freiras.

Daquelas revisitadas com alguma constância, algumas dão um prazer enorme rever. Dentre essas, as que registram meus primeiros passos no aprendizado do Jazz. E do Blues, também.

Ainda escrevia letras com resquícios de caderno de caligrafia, quando ouvi meus primeiros temas, e desde então, alguma coisa já me fascinava ao nível da emoção.

Por alguma razão, sabia o tempo todo que havia algo muito além das transpirações, dos vícios, das solidões. Havia uma estranha e prazerosa intensidade, uma coisa mágica que traduzia a reconexão das criaturas e o Criador.

Lembrei-me que vem daquele tempo o hábito arraigado de ouvir, por horas a fio, os temas mais pertinentes a cada um dos meus momentos. Alguns eletrizantes, outros reflexivos, mas todos balsâmicos.

Fiz-me íntimo de gente como Wes Montgomery, Basie, Ron Carter, Monk, Dexter Gordon, Dizzy e tantos outros. Gente iluminada que me transportava a mundos cuja existência desconhecia. Mas um cara, dentre eles, sempre me avassalou: Miles Davis.

Hoje, aqui, agora, enquanto tento convencer meus dedos a acompanhar meus pensamentos no teclado do computador, estou ouvindo quase à exaustão So what, na versão eternizada naquele que é reconhecido como um dos 10 melhores álbuns de todos os tempos: Kind of Blues. Simplesmente arrebatador.

Há uma coisa sagrada nisso tudo. Tem que haver.

Vejo claramente uma relação mística entre as notas, instrumentos e músicos. Há algo além da emoção, há magia.

Cada nota exala um aroma, libera uma luz, uma cor que desenha uma mensagem como numa tela de Petikov.

Instrumentos interagindo numa sinergia cósmica como a propor uma orgia de sons que elevam, purificam, dão sentido às coisas, explicam o inexplicável e nos remetem a um plano para o qual ainda não estamos preparados.

O trompete de Miles conversa comigo e tenta, desesperadamente, me fazer entender algo que não entendo. Emociona-me porque quer me ensinar a emocionar.

Fecho os olhos e, com os olhos da alma, enxergo aquela figura negra, magra, recurvada sobre a busca das notas perfeitas, misturando suor e lágrimas inconfessadas que escorrem cúmplices sobre o metal, enquanto sua pantomima expressa as alegrias e angústias da sacra sinfonia de So what.

Clube de gueto pobre em noite de chuviscos, pouca gente na casa, fumaça de cigarro misturada às mãos furtivas que bolinam as coxas das garçonetes. Bourbon barato, dedos tamborilando o balcão, iluminação de bas-fonds, spots singulares, sem efeitos especiais. So what.

Bocas de poucos dentes, hálitos impuros, falsa elegância de ternos mal talhados, a soberba dos negros iniciados que me olham de soslaio e sorrisos de secretos orgasmos entrelaçam olhares, também secretos, entre os músicos.

Queria saber emocionar com as palavras como esses caras me emocionam com a música. Mas, so what se não consigo? Sigo tentando, enquanto houver páginas em branco para serem escritas...

Anderson Fabiano

Imagem: Google

18/04/2011

Meu tempos de Nietzsche

Dia desses, organizando minha biblioteca, bati os olhos num livro de Nietzsche (aquele da capa verde) e, sem ter como fugir, revisitei meus tempos de jovem revolucionário, cheio de boas intenções. Recuperei, na frágil memória, desejos e planos para um país melhor, com mais esperanças e todas aquelas coisas que a gente pensa poder mudar quando se tem o futuro inteiro pela frente e ainda não temos impregnados na alma (e nas costas) as marcas de uma repressão violenta e sem sentido.

Com Nietzsche aprendemos a sabotar a lógica da filosofia dominante, fomos anarquistas do pensamento e, de quebra, cults. Da mesma patota, fomos “coleguinhas” de Marcuse, Engels, Marx, Hesse e outros criadores de caso que moldaram nosso jeito de ser e nos encorajaram a enfrentar a PM.

Era um tempo em que sonhar era direito de todos, não morávamos em apartamentos ou casas, mas em aparelhos. Qualquer de nós, acompanhado por mais dois, era visto como uma ameaçadora conspiração contra o país. Vivíamos, literalmente, nas sombras e atalhos da vida. Nosso caminho era marginal por excelência.

Depois a coisa ficou preta.

Muitos de nós morreram ou desapareceram (nome técnico dado para pessoas mortas em nome da Segurança Nacional). Alguns recomeçaram suas vidas no exílio, muitos ficaram grisalhos longe de suas famílias, outros cederam ao status quo, e todos, absolutamente todos, carregaram suas dores e frustrações pelo resto da vida.

Hoje, sentado atrás de uma indesejável barriga capitalista (que de capitalista mesmo só tem a barriga), volto a uma das máximas do velho Friedrich para entender a lembrança: “Na solidão, o solitário se devora. Na multidão, devoram-no. Pode escolher”. Triste sina dos pensadores. Consola-me uma de suas outras máximas, que só mesmo minha teimosia para manter viva: ”A arte deve antes de tudo, e em primeiro lugar, embelezar a vida”.

Ao escrever, acredito estar fazendo arte. Menos mal.

Anderson Fabiano


Imagem: Google

26/03/2011

O maior time de todos os tempos

Todo mundo que curte futebol tem na cabeça um time dos sonhos, não importando pra quem se torça. E comigo não é diferente: Fiat Lux, Phimatosan e Calcigenol; Coquinho, Nilópolis e Casacão; Mido, Fichinha, Cocão, Capa e Pateck Phillipe. Inesquecível! Um verdadeiro escrete que atravessou quase toda a década de 50, experimentando raríssimas derrotas.

Cada um deles foi preparado para ser um verdadeiro especialista da posição. Jogadores que inovaram o futebol do pós-guerra. Esse ataque, inclusive, é um dos segredos mais bem guardados que trago comigo.

Ainda me lembro quando essa intransponível defesa entrou em campo, pela primeira vez, e causou muita polêmica. Cada jogador estava preparado para render o máximo em sua posição e até aquela tarde de sábado ninguém havia visto, ainda, duas tampas de xarope, com bainhas perfeitas, formando a zaga de um clássico WM. Muito menos uma caixa de fósforos-goleiro preenchida com chumbo derretido. Imbatível!

Os meias mesclavam agilidade e robustez: pela direita, casca de coco; no meio, três fichas do Nilópolis-Cascadura coladas com esmalte e pela esquerda, um botão de osso afanado de um casaco velho da minha avó. Mas era no ataque que estavam as maiores novidades. Na ponta direita, uma galalite surrupiada do Mido do namorado de uma tia, durante um amasso (que ela nunca soube que eu vi). Veloz, ágil, difícil de marcar. Passava por onde ninguém esperava. Na meia-direita, uma ficha de ônibus que rodava na Zona Sul, que não depositei na urna durante um passeio que fiz com a mesma tia, só que acompanhada de outro namorado. Grossa, larga, de chute extremamente forte. O centro-avante trombador pedia a bola sempre enfiado no meio dos beques e como valia derrubar o goleiro adversário (desde que tocasse primeiro na bola), o malandro fazia a festa. Na meia-esquerda, um avante que não davam muito por ele, mas extremamente eficiente, o melhor ladrão de bola do time (talvez por ser originário de uma capa de gabardine, daquelas tipo Sherlock Holmes) e, na ponta esquerda, a melhor aquisição daquele timaço: um cristal de Pateck Phillipe perfeito. Velocíssimo! Imarcável! E essa eu preciso contar. Seguinte: um tio, irmão de meu pai, tinha a fama de haver roubado uns cristais e outras tantas pratarias, durante a separação dos meus velhos. Muito cara de pau convidou-me, certa vez, para passar um fim de semana na casa dele. Lá, pude ver, dentro de reluzentes cristaleiras, o que pensava ser os tais cristais dos quais tanto ouvira falar. Como o cara se gabava de possuir um monte de traquitanas, acabou por me mostrar uma caixa que, segundo ele, dificilmente alguém mexia para não expor a raridade lá guardada: uma fantástica coleção de relógios.

O tal tio safado exibiu-me todos, relatando de cada um as particularidades. Quando me apresentou ao tal Pateck Phillipe, falou-me das maravilhas do cebolão, inclusive que sua proteção era de cristal puro e coisa e tal.

À noite, prepararam-me uma cama no quartinho onde o adorável larápio guardava suas raridades. Eu, que vivia numa pindaíba do cacete, sem mordomia nenhuma (coisa que em parte teria acontecido por conta dos tais bens de família que sumiram) resolvi dar uma de vingador. Assim, o cristal puro do relógio extraordinário do meu tio nem tanto, foi parar na ponta esquerda do meu time de futebol de botões.

É possível que muita gente talvez nunca tenha ouvido falar em nenhum desses craques, mas quem andava lá pelos lados da Rua Mendes de Aguiar, nos idos dos anos cinquenta, conheceu o Vasquinho do neto da dona Ávila: Barbosa, Paulinho e Bellini; Élcio, Orlando e Coronel; Sabará, Almir, Vavá, Rubens e Pitanga.

E o Pinga era de cristal importado.

Anderson Fabiano

Imagem: Google editada pelo autor

03/03/2011

O país do talvez

Preciso tomar cuidado com a minha taxa básica de anarquia, senão acabo voltando pra cadeia em pleno alvorecer da terceira idade, o que seria um péssimo exemplo para essa juventude calça cofrinho e barriga tanquinho.

Tudo começou com uma manchete de telejornal: “Nenhum político ou ministro foi condenado, nos últimos 40 anos,
pelo STJ.”

Imediatamente, pensei nesse monte de gente que frequenta noticiário com seus escândalos contumazes e fiquei apavorado com a inequívoca demonstração de corporativismo da rapaziada. Não sei por que, lembrei da frase erroneamente atribuída ao De Gaulle*, na Guerra das Lagostas, episódio bizarro dos anos 60 e premonitório, se visto com olhos dos dias de hoje: “O Brasil não é um país sério”. Quer dizer, o país até que é. O problema, talvez, é que Brasília fica longe demais do Brasil. E nós, reles eleitores e contribuintes dos impostos mais caros do mundo somos obrigados, qual cordeirinhos, a retificar a famosa frase com um acanhado “sério não, apenas engraçado”.

A gente adotou uma educação francesa, para tentar viver como americanos, num país colonizado por portugueses degredados que, por sua vez, seguiam ordens de outros tantos que vieram dar em nossos costados fugindo de Napoleão. E, como ninguém queria nada com a “Hora do Brasil”, empregaram (no sentido de “usaram” e não no de “deram emprego”) mão de obra escravizada de negros raptados de suas nações, pelos quais pagaram pedágio atlântico aos corsários ingleses, com ouro das Geraes. E essa zorra toda sob os ditames judaico-cristãos da Santa Igreja. Quer dizer, não podia dar certo mesmo. Isso tudo, apenas, para que nossos colonizadores pudessem sentar em suas varandas palacianas, comer frango assado com as mãos, se refestelarem com as formas voluptuosas das negras ladeira acima e ensinarem pra gente como plantar algodão pra vender pros States e depois comprar calça Lee. Ou, se preferirem, plantar café e vender pros europeus, pra depois importar Nescafé.

Assim, com o devido respeito, me arvoro a corrigir a histórica frase: não se trata de ser sério ou não. O problema é que o Brasil é um país de amadores. Nessas terras, prostituta goza e traficante cheira. Dessa forma, nada mais natural que aqueles a quem confiamos um mandato para criar leis e fiscalizar o Executivo, sejam os primeiros a “passar batido” por sobre todas elas, em troca de uns cascalhos ou um favorzinho aqui, outro ali.

Por essas e por outras, ando pensando (com meu lado anárquico, é claro) em assumir a presidência da república (assim mesmo, com caixa baixa e tudo). E, sem perda de tempo, já estou rascunhando minhas metas com coisas bem simples.

Para começar, gostaria de encontrar algumas respostas que andam perdidas por aí. Por exemplo: por onde anda aquela cueca de 80 mil dólares? E o dossiê do PSDB? Ou, quem pagou (e para onde foram) os quatro milhões que o Roberto Jefferson disse, em cadeia nacional, que recebeu do PT? No que deu a CPI do Mensalão? Quem inventou, afinal, esse tal de apagão? Perguntas simples, que todo cidadão de bem se faz, diuturnamente.

Mas, tem mais: vou proibir, logo no primeiro dia de mandato, por Medida Provisória, a fabricação de cigarros em todo território nacional! Cigarro por aqui, agora, só importado e ao custo mínimo de trinta e cinco dólares o maço. Quem sabe assim esses ambientalistas xiitas param de tratar fumantes como cidadãos de segunda classe. Haja saco! (Só perdem mesmo para os defensores dos direitos humanos dos bandidos).

Outra coisa, se AK-47 vem da Rússia, AR-15 dos States e Uzi de Israel, alguém sabe me dizer como esse armamento chega aos Boréis da vida? E, pra terminar, tô pensando seriamente em mandar uma rapaziada até a Bolívia, para pegar nossas refinarias de volta. (Ah! Se elas fossem dos louros meninos do norte...)

Quer saber? Acho melhor ficar por aqui. Mas confesso que ainda estou em dúvida se embarco nessa onda anárquica e falo o que todo mundo anda doido para falar ou se continuo brincando de cidadão imbecil e hipocritamente correto. Ou será melhor arrumar um boné do MST? Vai que os caras resolvem inventar um AI desses da vida e vai começar tudo de novo...

Anderson Fabiano

* A famosa frase “O Brasil não é um país sério” é de autoria do embaixador Carlos Alves de Souza Filho e teria sido dita em 1963 e atribuída, erroneamente, ao então presidente da França, Charles de Gaulle.

Publicada originalmente em 23 de junho de 2007, no CooJornal nº 534