21/05/2011

So what

Percebo que nas muitas páginas já escritas da minha vida, umas merecem mais destaques que outras. Algumas, já foram relidas tantas vezes que precisei marcá-las com orelhas para não perdê-las de vista. Outras, entretanto, permanecem imaculadas como alunas recém ingressas num colégio de freiras.

Daquelas revisitadas com alguma constância, algumas dão um prazer enorme rever. Dentre essas, as que registram meus primeiros passos no aprendizado do Jazz. E do Blues, também.

Ainda escrevia letras com resquícios de caderno de caligrafia, quando ouvi meus primeiros temas, e desde então, alguma coisa já me fascinava ao nível da emoção.

Por alguma razão, sabia o tempo todo que havia algo muito além das transpirações, dos vícios, das solidões. Havia uma estranha e prazerosa intensidade, uma coisa mágica que traduzia a reconexão das criaturas e o Criador.

Lembrei-me que vem daquele tempo o hábito arraigado de ouvir, por horas a fio, os temas mais pertinentes a cada um dos meus momentos. Alguns eletrizantes, outros reflexivos, mas todos balsâmicos.

Fiz-me íntimo de gente como Wes Montgomery, Basie, Ron Carter, Monk, Dexter Gordon, Dizzy e tantos outros. Gente iluminada que me transportava a mundos cuja existência desconhecia. Mas um cara, dentre eles, sempre me avassalou: Miles Davis.

Hoje, aqui, agora, enquanto tento convencer meus dedos a acompanhar meus pensamentos no teclado do computador, estou ouvindo quase à exaustão So what, na versão eternizada naquele que é reconhecido como um dos 10 melhores álbuns de todos os tempos: Kind of Blues. Simplesmente arrebatador.

Há uma coisa sagrada nisso tudo. Tem que haver.

Vejo claramente uma relação mística entre as notas, instrumentos e músicos. Há algo além da emoção, há magia.

Cada nota exala um aroma, libera uma luz, uma cor que desenha uma mensagem como numa tela de Petikov.

Instrumentos interagindo numa sinergia cósmica como a propor uma orgia de sons que elevam, purificam, dão sentido às coisas, explicam o inexplicável e nos remetem a um plano para o qual ainda não estamos preparados.

O trompete de Miles conversa comigo e tenta, desesperadamente, me fazer entender algo que não entendo. Emociona-me porque quer me ensinar a emocionar.

Fecho os olhos e, com os olhos da alma, enxergo aquela figura negra, magra, recurvada sobre a busca das notas perfeitas, misturando suor e lágrimas inconfessadas que escorrem cúmplices sobre o metal, enquanto sua pantomima expressa as alegrias e angústias da sacra sinfonia de So what.

Clube de gueto pobre em noite de chuviscos, pouca gente na casa, fumaça de cigarro misturada às mãos furtivas que bolinam as coxas das garçonetes. Bourbon barato, dedos tamborilando o balcão, iluminação de bas-fonds, spots singulares, sem efeitos especiais. So what.

Bocas de poucos dentes, hálitos impuros, falsa elegância de ternos mal talhados, a soberba dos negros iniciados que me olham de soslaio e sorrisos de secretos orgasmos entrelaçam olhares, também secretos, entre os músicos.

Queria saber emocionar com as palavras como esses caras me emocionam com a música. Mas, so what se não consigo? Sigo tentando, enquanto houver páginas em branco para serem escritas...

Anderson Fabiano

Imagem: Google